Beleza no obscuro

Há escritores que se especializam em criar um universo, megaprojeções de uma realidade expandida e complexa, permeada de inúmeras tramas e subtramas. E existem aqueles que criam um microcosmo da realidade e desenvolvem, nesse pequeno campo de histórias, uma grande acuidade poética em cantos obscuros e em momentos sutis de seus enredos.

Grandes nomes constam desse segundo grupo de ficcionistas. Os mais notórios, entre os norte-americanos, são nomes como Richard Ford, Cormac McCarthy e o irretocável Kent Haruf — atilados escritores que incrementaram as obras literárias sobre o interior dos Estados Unidos.

Haruf é um dos responsáveis pela elaboração da estrutura do famoso épico romance moderno do oeste norte-americano. O autor desenvolveu uma prosa onde a ternura e o encanto se manifestam numa construção tão bem arquitetada que as páginas se entrelaçam e o leitor as encara como se todas elas fossem parte de um organismo pulsando vida enquanto o mosaico polifônico do oeste norte-americano apresenta-se como chamado a um Novo Mundo. Continuar a ler

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Tudo é uma coisa só

“Sebastopol”, de Emilio Fraia, traz contos carregados de uma sutil tensão melancólica

Em 1855 foi publicado o trabalho que seria a base do clássico Guerra e paz, de Liev Tolstói: Contos de Sebastopol. Em três narrativas curtas, o escritor russo destrincha episódios sobre a Guerra da Crimeia em contos cujos títulos eram nominados através dos meses do ano. Esse exercício de abreviada extensão serviu como estrutura fundamental para erigir o volumoso colosso responsável por consagrar seu nome na história da literatura.

Num exercício semelhante, surge Sebastopol, estreia solo do jornalista e escritor Emilio Fraia. Como na obra de Tolstói, o trabalho de Fraia também se divide em três contos cujos títulos são meses do ano.

Três histórias que ecoam entre si, num encontro e desencontro de pontos em comum, e que funcionam como uma sala de espelhos cujos reflexos são sempre indiretos e por vezes distorcidos. Continuar a ler

A América Nazista de Bolaño

Sempre que temos em mente a ideia de defensores do nazismo, o imaginário coletivo se responsabiliza em procurar a imagem mais estereotipada possível para nos apresentar este indivíduo abjeto que vê algum sentido num sistema de pensamento igualmente abjeto.

Nos vem a mente uma pessoa raivosa, descontrolada e absurda, que jorra ódio gratuito em toda e qualquer oportunidade sobre os grupos que ela constituiu como inimigas da sua visão de mundo perfeito.

E para os latino-americanos essa visão traz na sua própria essencialidade uma dimensão abstrata de distância: “eles”, os nazistas alemães, que estão “lá”, longe, distantes da efervescente realidade do continente americano. Continuar a ler

O poeta do chão firme

“O autor não responde pelos incômodos que seus escritos possam provocar”, diz Nicanor Parra em “Advertência ao Leitor”, poema do seu “Poemas e Antipoemas”, de 1954, obra responsável por uma tremenda revolução na poesia chilena.

O poema está na coletânea “Só Para Maiores de Cem Anos — Antologia (Anti)Poética” (288 páginas) — que reúne, em 75 poemas, uma parte expressiva da obra de um dos maiores nomes da poesia da literatura ibero-americana. Edição bilíngue publicada pela Editora 34, a obra foi traduzida por Cide Piquet e Joana Barossi, que assina um posfácio tocante e pessoal.

A tradução é um primoroso trabalho de manutenção da linguagem, da marcação, e da temporalidade do ritmo de Parra — que funciona perfeitamente alinhada com os poemas em idioma original, no qual o leitor pode cotejar e destrinchar o elaborado exercício formulado a quatro mãos por Barossi e Piquet. Um exercício que mantém um profundo respeito à poesia de Parra e à sua linguagem. Continuar a ler

Lampião em detalhes

Virgolino Ferreira. Virgulino Ferreira. Capitão Virgulino. Capitão Lampião. Lampião. O nome, o título ou o apelido — não importa como se chame, mas, ao pronunciar o nome de Lampião, mesmo o mais inculto dos sujeitos saberá de quem se trata, saberá que estamos falando da lendária figura, do mítico cangaceiro, responsável pelas mais absurdas atrocidades e dono das histórias mais poderosas do passado recente do país.

Virgulino Ferreira é um dos personagens mais interessantes e ricos da história do país (analisado até pelo historiador britânico Eric Hobsbawm). Rodeado de lendas sobre si e seus feitos, a biografia de Lampião sempre careceu de veracidade. Muito sobre ele se fala, pouco de fato sobre ele se conhece.

Muitas vezes retratado como a maior figura do banditismo rural do começo do século passado, ladrão sanguinário e dado a crueldades, também teve sua trajetória retratada como a de um nordestino miserável que viu no crime a saída para as injustiças sociais pelas quais passou na vida. Continuar a ler